Rio de Janeiro, 16-17 de setembro de 2007
Nos últimos dias tenho me sentido muito bem. Se evito a palavra "felicidade" é tão somente para me distanciar de quem a usa de maneira vazia ou insípida. O escritor Leão Tolstói abre sua obra Ana Karênina com a seguinte frase:
"Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira."
Isso me leva a questionar o sentido de felicidade. Podemos ser felizes por muito tempo? Quais são os precisos instantes em que a felicidade se torna evidente, talvez até passível de constatação analítica? Será que fazer tantas perguntas sobre esse assunto diminui minha chance de ficar 'de bem com a vida'??
Mas eu sou só um economista chato que fica querendo caçar alguma desculpa para aplicar o próprio ferramental teórico... O Senhor Leão está mais do que certo no que escreve. Principalmente por nos apresentar a farsa que é a felicidade duradoura.
Por supuesto não deixa de soar estranho uma família "feliz". Se a mesma existisse, não seria tolerada. Mas será esse um defeito humano? Poderia concordar com os Wachowski, mas acho que tal peculiaridade está longe de ser falha.
Larry e Andy Wachowski (para nossos leitores menos ligados em popnerdices) são os diretores do filme The Matrix, marco cultural nos idos de 1999. Naquele filme a humanidade virou pilha alcalina para robô mas a raça mecânica ainda sente a necessidade de nos contar uma mentira paliativa(venhamos e convenhamos, é uma baita prova de piedade dos nossos binários captores querer inventar uma prisão que ainda serve de representação da alegoria da caverna, mas sigamos...). A parte do filme que me interessa é aquela na qual o Agente Smith afirma a Morpheus que a Matrix atual é a terceira ou vigésima versão e que foi feito um aperfeiçoamento a partir da primeira tentativa fracassada de criar um simulacro para nós, pobres pilhas médias. O raciocínio smithiano é encerrado pela constatação do erro inicial: nenhum humano acreditaria em vidas de mentirinha em que fossem felizes.
Ao ler a última frase percebo um sorriso de esguelha que deve ser creditado ao meu notável bom-humor momentâneo. Ora pois pois! Os robôs realmente tentaram nos trazer o bem, mas nós homo sapiens sapiens malcriados só queremos saber do gosto amargo do fruto proibido. Não deixa de ser divertido tentar imaginar essa "Matrix Prime"... Será que ninguém se machuca, nem tem dor de barriga, nem fica de saco cheio de seus semelhantes? Seríamos todos nós acostumados à letargia monotônica? Robôs conseguem, afinal, definir felicidade eterna de uma maneira satisfatória?
Pois bem, mesmo que tenha perdido um pouco o fio da meada com essa digressão, fico satisfeito com seu conteúdo. O ponto principal é que isso de viver sem ser feliz e ainda ter uma boa dose de ceticismo para com as Polianas do mundo é algo perfeitamente natural. E me parece ser bastante salutar.
Sempre surgem problemas, precisamos cumprir diversas formalidades inúteis (p.ex. respirar) e nunca deixamos de habitar esse nosso invólucro denominado corpo. Alguém que se define "feliz", diz respeito a toda sua existência ou só a uma pequena (e efêmera) fresta intelectual? Mesmo o mais empedernido otimista pode ter suas crenças abaladas por uma seqüência de maus-bocados. Ou então uma doença que leve ao delírio (causada por um micróbio ranzinza) conseguiria cortar o meu joie-de-vivre assim, do nada, sem nem pedir licença.
E é por isso que acho tão difícil afirmar (convicto) que estou feliz. Essa minha felicidade está muito longe daquela que Tolstói menospreza e os Wachowski dizem ser impraticável. Ela é prima-irmã do DEVIR, de HERÁCLITO, da instabilidade como única certeza de fato. Estar feliz é algo puramente contingencial e no fundo é só um grande resumo de um amontoado de sensações físicas e psíquicas que podem me deixar especialmente tolerante numa manhã nublada como esta. A mudarem as condições de temperatura e pressão sempre existe algum risco do bom humor dar a meia volta.
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Algumas ressalvas muito razoáveis
Decerto que existem pré-requisitos para poder sentir essa felicidade que vem e vai como onda. Entendo ser difícil cantarolar alegremente enquanto se vive a agonia da falta de recursos. Existe até um clichê do jornalismo televisivo que se relaciona a isso. No JN (ou no genérico da Record) algumas matérias mais positivas se encerram com o sorriso franco de alguém que vive na pobreza. Confesso que essa manifestação me incomoda sobremaneira. Fica uma sensação ruim, pois parece um gesto desesperado, uma resposta inconsciente a todo aparato que veio registrar sua vida humilde. Demagogia e televisão formam uma mistura particularmente sórdida.
Desejo aos gatos pingados que chegarem até o final deste texto que possam ter também os seus momentos de gratificação. E, acima de tudo, que façam por merecer a doce recompensa que nos traz a felicidade.